23 de Junho

A crítica de Chrystian ao Chuva de Bala

Artista de verdade: aplaude artista.
Fica à espreita da vida não, sempre posando de contramão, sempre aguerrido coração.
Artista de verdade muda o mundo, refaz a contramão.
Beija a generosidade, bebe vaidades, e novamente muda tudo, revira juízos, coragem como missão.

Marcos Leonardo, que rodou o mundo, fez de Macaé, no Rio de Janeiro, sua escola e voltou para Mossoró, berço das suas gentes, é assim.

Artista luz, delicado, sonhador e... quanta ousadia!
Ele, que com talento e desenvoltura brilhou como o Prefeito Rodolfo Fernandes, também como figurinista da trama por anos a fio voltou, em 2018, como diretor daquele que é o maior espetáculo, hoje, de Mossoró.
E muito se deve a João Marcelino, deus do ofício, maestro do encantamento que transformou, com seu infindo talento, o Chuva num símbolo da arte no Rio Grande do Norte.

Marquinhos chegou como só ele sabe ser: destemido, “desaguerrido”, aplaudido; voltou pela contramão, se refez, nem aí para o tempo, sua aridez, voltou seu coração e, refeito por sua mente brilhante, seu trabalho transformou o Chuva de Bala numa unanimidade.

Gênio, ele mudou tudo!
Ah, a coragem...
Necessária, tanto que entregou à cidade um dos mais belos e lúdicos Chuva de Bala no País de Mossoró da sua história, que já dura quase duas décadas.
E... que espetáculo lindo!

Logo na abertura, o bailar, o figurino, meninas e meninos anunciam a festa embrulhados de Xilogravura, uma arte que eu, particularmente, amo.

Sobem as cortinas e outro susto, desses bem ótimos, que adoramos sentir.
Uma banda, os bonequinhos de barro como inspiração, e músicos de primeira grandeza numa estante, enorme, que nos petrifica, de pronto. A loucura de Marquinhos é tanta que até as bochechas dos músicos são pintadas, um vermelho que salta aos olhos.

- Toda sala, na casa de um nordestino, tem uma estante. Lá são colocados os objetos mais importantes para uma família. Quase um santuário, nos disse outra noite, cigarro em punho, dose sei lá do que na outra.

E ficou lindooooooooooooooooooo!


Como linda é a música, despretenciosa, de Caio Padinha, um mestre no assunto cifras, condão.
O letrado é fácil, as canções nos envolve, a poesia é leve, crua, linda!

Romero Oliveira vive seu grande momento com o personagem Antônio, que apresenta e costura a trama. Que ator excepcional!
O cara canta, toca gaita, se troca em gaiatices e, numa alusão ao grande Waldemar dos Pássaros, personagem da arte linda e abandonada de Mossoró, confunde a plateia mais atenta – será Antônio? Será Waldemar?
É tão lindo quando “eles conversam”.
E pensar que em vida Waldemar não teve o abraço político, a homenagem merecida...
Marcos Leonardo, antes que algum ilustre senhor apareça... assim o abraçou.

E da maneira mais bela que existe!

E de repente Lampião...
Aqui, Marcos Leonardo sendo ele mesmo. Ousado, criativo, cândido.
No figurino dos cangaceiros, florzinhas adoçam punhais – e canecas de ágata mostram o cuidado com vestimentas e personagens.
Os terços, os lenços, o esmero: insuperáveis. Até uma velha moringa entra em cena, cangaço come banana: o máximo!
E o Pau de Chuva: que charme!

Dionísio do Apodi, parabéns pelo seu sempre assustador, mesmo temente a Deus e ao seu Padre Cícero, Lampião.
Irretocável.

É lindo ver Plínio Sá como Massilon: grande ator. Tem o ‘timing’ certo, a hora correta de respirar, de pegar no punhal, de gritar, de tragar. Cada Massilon que interpreta tem um que de luz. Plínio arrebatador.
E quão bem faz assistir e aplaudir Jeyzon Leonardo, um dos maiores atores de Mossoró!
Que se diga: num papel bem menor do que ele.
E aplaudir aqui Elzimário Macário, Gustavo Sena, Erismar Cunha: sentir a arte de vocês é glória!

Um parênteses aqui para abraçar Damásio Costa. O ator é, simples assim, perfeito.
Até a respiração, a súplica, o medo.
Damásio é mestre, coerente com sua arte, tão grande em cena; monstro.

Dos momentos mais tocantes ecoa o Hino de Mossoró!
Filho da terra que sou, não contenho a emoção cada vez que ouço.

Nas crônicas da gente brasileira
Queremos um lugar prá Mossoró
Cidade centenária e pioneira
Desbravadora do ínvio Sertão
Sofreram os seus filhos a canseira
Viveram na esperança a vocação

 

E de repente o palco se enche novamente.
Com Ígor Fortunato, tão grandioso, tão dono de si.
Um ator ciente do seu papel, dono do mundo. Chega e ponto. E reticências. Interpreta o prefeito Rodolfo Fernandes, cabelo grisalho, canta lindo, tão fã.
Como de Júnior Félix, sempre muito bom revê-lo, abraçar sua arte de anos sem fim para a cidade.
O trio, completado pelo Padre Mota, com uma franja de rede na batina (adorei), do excelente ator Carlos José merece, de verdade, aplausos à parte.
 

Uma das cenas mais emocionantes, As Viúvas deixadas pelo bando de Lampião sempre nos arrebata.
Tony Silva soberana, dona de toda verdade, linda, densa, tensa.
No contraponto, Joriana Pontes de Santa Luzia. E, a bem da verdade, uma das interpretações mais plenas da padroeira dos Mossorós. Está linda no papel. Sem uma fala... mas ator bom, precisa sequer solfejar.
É lindo ver Luciana Duarte em cena! Um sofrimento tão grande, tão deformante. De brinde, Marilha Kardenally e Dayane Nunes + Michele Fábia, Neuminha Almeida, Mônica Danuta: um presente, essas meninas em cena.
Sempre!

A batalha, a morte de Jararaca.
E mais uma vez Maxson Áriton faz lindo! Vontade de parar tudo, aplaudir, àquele momento, de pé, seu Jararaca.
E a loucura de Marquinhos nos brinda, mais uma vez, com seus devaneios despudorados.
Jararaca engolido pelo Inferno de Dante Alighiere, o primeiro da trilogia da “Divina Comédia”

Foi escrito no início do Século XIV, mas segue atualíssimo.
As mãos engolindo o homem trôpego, enterrado vivo e, também por isso, quase beatificado pelo imaginário.

No fim de tudo, a apoteose.
Uma grande festa, como assim deveria a vida ser!
O bem sobre o mal, o mal abraçado por Dante, a vida celebrando vitórias.

O Chuva de Bala de Marcos Leonardo é belo!
Falta, a alguns atores, acreditarem nisso. Menos caras e bocas, mais entregas.
Aliás, a única falha: a entrega de alguns, ali que, mornos, muitas vezes não empolgam.


No que se refere à vida, todos os vivas para Marquinhos!
Que mostrou ao mundo que mudar vale à pena, que ousar não deixa nossa alma óbvia, frugal ou pequena... e que sonhar é, para todo artista, devassidão.
Marquinhos é artista que aplaude artista.
Artista de verdade muda o mundo, refaz a contramão.

Beija a generosidade, bebe vaidades, muda tudo, coragem como missão.
E revira tudo, enlouquece, arruma, desarruma, furacão.

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